Homilia do Papa no 50º aniversário de falecimento de Pio XII

Sumo Pontífice Pio XII
Nesta quinta-feira, 9 de outubro, às 11h30, Bento XVI presidiu, na Basílica de São Pedro, a Santa Missa em sufrágio pelo defunto Sumo Pontífice Pio XII, no 50º aniversário de seu falecimento.

Publicamos a homilia pronunciada pelo Papa.

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Senhores cardeais,
venerados irmãos no episcopado e no sacerdócio,
queridos irmãos e irmãs:
A passagem do livro do Eclesiástico e o prólogo da Primeira carta de São Pedro, proclamados como primeira e segunda leituras, nos oferecem elementos significativos de reflexão nesta celebração eucarística, durante a qual recordamos meu venerado predecessor, o servo de Deus Pio XII. Passaram exatamente 50 anos desde a sua morte, que aconteceu nas primeiras horas do dia 9 de outubro de 1958. O Eclesiástico, como escutamos, recordou a todos os que se propõem a seguir o Senhor que têm de preparar-se para enfrentar provas, dificuldades e sofrimentos. Para não sucumbir a eles – adverte –, é preciso ter um coração reto e constante, é preciso ter fidelidade a Deus e paciência, unidas a uma inflexível determinação de manter-se no caminho do bem. O sofrimento afina o coração do discípulo do Senhor, como o ouro que se purifica no fogo. “Tudo o que te acontecer, aceita-o, e nas vicissitudes que te humilharem sê paciente, pois o ouro se prova no fogo, e os eleitos, no cadinho da humilhação” (2, 4-5).

São Pedro, por sua parte, na perícope que escutamos, dirigindo-se aos cristãos das comunidades da Ásia Menor que eram “contristados por diversas provações”, vai inclusive além: pede-lhes que, apesar disso, “se alegrem” (1 Pd 1, 6). Em efeito, a provação é necessária, observa, “a fim de que a autenticidade comprovada da vossa fé, mais preciosa do que o ouro que perece, cuja genuinidade é provada pelo fogo, alcance louvor, glória e honra por ocasião da Revelação de Jesus Cristo”. (1 Pd 1, 7). E depois, pela segunda vez, ele os exorta a jubilar-se, inclusive a exultar de “alegria inefável e gloriosa” (v. 8). A razão profunda deste gozo espiritual está no amor a Jesus e na certeza da sua presença invisível. Ele torna inquebrantáveis a fé e a esperança dos crentes, inclusive nas fases mais complicadas e duras de sua existência.

À luz destes textos bíblicos, podemos ler a vida terrena do Papa Pacelli e seu longo serviço à Igreja, começado em 1901, durante o pontificado de Leão XIII, e que continuou com São Pio X, Bento XV e Pio XI. Estes textos bíblicos nos ajudam antes de tudo a compreender qual foi a fonte da qual ele extraiu valor e paciência em seu ministério pontifical, desenvolvido durante os atormentados anos da 2ª Guerra Mundial e no período seguinte, não menos complexo, da reconstrução e das difíceis relações internacionais passadas à história com o significativo nome de “Guerra Fria”.
"Miserere mei Deus, secundum magnam misericordiam tuam": com esta invocação do salmo 50/51, Pio XII começava seu testamento. E prosseguia: “Estas palavras que, consciente de não ser digno e de não estar à altura , pronunciei no momento em que aceitei, tremendo, minha eleição a Sumo Pontífice, com maior fundamento as repito agora”. Nesse momento, faltavam dois anos para a sua morte. Abandonar-se nas mãos misericordiosas de Deus: esta foi a atitude cultivada constantemente por este venerado predecessor meu, último dos Papas nascidos em Roma e pertencente a uma família ligada há muitos anos à Santa Sé. Na Alemanha, onde levou a cabo sua tarefa de núncio apostólico, primeiro em Munique e depois em Berlim até 1929, ele deixou uma grata memória, sobretudo por ter colaborado com Bento XVI na tentativa de deter “o massacre inútil” da Grande Guerra, e por ter advertido desde o começo o perigo que constituía a monstruosa ideologia nacional-socialista com sua perniciosa raiz anti-semita e anti-católica. Criado cardeal em dezembro de 1929 e nomeado secretário de Estado pouco depois, durante 9 anos ele foi fiel colaborador de Pio XI, em uma época marcada pelos totalitarismos: o fascista, o nazista e o comunista soviético, condenados respectivamente nas encíclicas Non abbiamo bisogno, Mit Brennender Sorge e Divini Redemptoris.

“Quem escuta a minha palavra e crê... tem vida eterna” (Jo 5, 24). esta afirmação de jesus, que escutamos no Evangelho, nos faz pensar nos momentos mais duros do pontificado de Pio XII, quando, ao perceber o menoscabo de toda certeza humana, ele sentia uma grande necessidade, também mediante um constante esforço ascético, de aderir a Cristo, única certeza que não defrauda. A Palavra de Deus se convertia, assim, em luz do seu caminho, um caminho no qual o Papa Pacelli ofereceu seu consolo a evacuados e perseguidos, teve de secar lágrimas de dor e chorar pelas inumeráveis vítimas da guerra. Somente Cristo é a verdadeira esperança do homem; somente confiando n’Ele, o coração humano pode se abrir ao amor que vence o ódio. Esta consciência acompanhou Pio XII em seu ministério de sucessor de Pedro, ministério que começou precisamente quando se intensificavam sobre a Europa e sobre o resto do mundo as nuvens ameaçadoras de um novo conflito mundial, que ele tentou evitar por todos os meios: “O perigo é iminente, mas ainda há tempo. Com a paz, nada está perdido. Tudo pode ser perdido com a guerra”, gritou em sua mensagem radiofônica do dia 24 de agosto de 1939 (AAS, XXXI, 1939, p. 334).

A guerra evidenciou o amor que ele nutria pela sua “Roma dileta”, amor testemunhado pela intensa obra de caridade que promoveu em defesa dos perseguidos, sem distinção alguma de religião, etnia, nacionalidade, ideologia política.

Quando, com a cidade ocupada, lhe aconselharam repetidas vezes que deixasse o Vaticano para estar a salvo, sua resposta foi sempre idêntica e decidida: “Não deixarei Roma nem meu cargo, ainda que tivesse de morrer” (cf. Summarium, p. 186). Os familiares e outras testemunhas falaram também da falta de alimentos, calefação, roupa e comodidades, privações às quais se submeteu voluntariamente para compartilhar as condições das pessoas duramente enfraquecidas pelos bombardeios e pelas conseqüências da guerra (cf. A. Tornielli, Pio XII, Un uomo sul trono di Pietro). E como esquecer a mensagem natalina transmitida pela rádio em dezembro de 1942? Com a voz quebrada pela emoção, deplorou a situação das “milhares de pessoas que, sem culpa alguma, às vezes somente por razões de nacionalidade ou etnia, estão destinadas à morte ou a uma deterioração progressiva” (AAS, XXXV, 1943, p 23), com uma clara referência à deportação e ao extermínio perpetrado com os judeus. Freqüentemente atuou de forma secreta e silenciosa, precisamente porque, consciente das situações concretas desse complexo momento histórico, ele intuía que somente dessa forma se podia evitar o pior e salvar o maior número possível de judeus. Devido a estas intervenções, ele recebeu numerosas e unânimes provas de gratidão no final da guerra, assim como no momento da sua morte, das autoridades mais relevantes do mundo judaico, como, por exemplo, o ministro de assuntos exteriores de Israel, Golda Meier, que escreveu assim: “Quando o martírio mais espantoso atingiu nosso povo, durante os 10 anos do terror nazista, a voz do pontífice se levantou a favor das vítimas”, concluindo com emoção: “Nos choramos a perda de um grande servidor da paz”.

Infelizmente, o debate histórico, nem sempre sereno, sobre a figura do servo de Deus Paio XII, descuidou de alguns aspectos do seu poliédrico pontificado. Muitíssimos foram os discursos, as alocuções e as mensagens que ele teve com cientistas, médicos e expoentes dos mais variados grupos profissionais, alguns dos quais continuam sendo ainda hoje de extraordinária atualidade e um ponto seguro de referência. Paulo VI, que foi seu fiel colaborador durante muitos anos, descreveu-o como um erudito, um estudioso atento, aberto aos modernos caminhos da pesquisa e da cultura, com uma fidelidade sempre firme e coerente, tanto com os princípios da racionalidade humana como com o intangível depósito das verdades da fé. Considerava-o como um precursor do Concílio Vaticano II (cf. Ângelus de 10 de março de 1974). Nesta perspectiva, muitos documentos seus mereceriam ser recordados, mas eu me limito a citar somente alguns deles. Com a encíclica Mystici Corporis, publicada no dia 29 de junho de 1943, enquanto a guerra ainda acontecia, ele descrevia as relações espirituais e visíveis que unem os homens com o Verbo encarnado e propunha incluir nesta perspectiva todos os principais temas da eclesiologia, oferecendo pela primeira vez uma síntese dogmática e teológica que foi depois a base da constituição dogmática conciliar Lumen gentium.
Poucos meses depois, no dia 20 de setembro de 1943, com a encíclica Divino afflante Spiritu, ele estabelecia as normas doutrinais para o estudo da Sagrada Escritura, destacando a importância e o papel da vida cristã. Trata-se de um documento que dá testemunho de uma grande abertura à pesquisa científica dos textos bíblicos. Como não recordar esta encíclica enquanto estão se levando a cabo os trabalhos do sínodo que tem como tema precisamente “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”? Deve-se à intuição profética de Pio XII a posta em andamento de um sério estudo sobre as características da historiografia antiga, para compreender melhor a natureza dos livros sagrados, sem enfraquecer nem negar o valor histórico. Um estudo mais profundo dos “gêneros literários”, cuja finalidade era compreender melhor o que o autor sagrado havia querido dizer, até 1943 era visto com certa suspeita, devido também aos abusos que se haviam produzido.

A encíclica reconhecia sua justa aplicação, declarando legítimo para o estudo o uso não somente do Antigo Testamento, mas também no Novo. “Hoje, além disso, esta arte – explicou o Papa – que costuma ser chamada de crítica textual e nas edições dos autores profanos é empregada com grande exaltação e iguais resultados, aplica-se com pleno direito aos Livros Sagrados, precisamente pela reverência devida à Palavra de Deus.” E acrescenta: “O objetivo daquele é, de fato, devolver o texto sagrado, com a maior precisão possível, ao seu conteúdo primitivo, purgando-o das deformações introduzidas pelos erros dos copistas e livrando-o das anotações e lacunas, da transposição de palavras, das repetições e de outros defeitos de todo gênero, que nos escritos transmitidos à mão durante muitos séculos costumam infiltrar-se” (AAS, XXXV, 1943, p. 336).

A terceira encíclica que eu gostaria de mencionar é a Mediador Dei, dedicada à liturgia, publicada no dia 20 de novembro de 1947. Com este documento, o servo de Deus deu impulso ao movimento litúrgico, insistindo no “elemento essencial do culto”, que “deve ser o interior: é necessário, de fato, viver sempre em Cristo, dedicar-se por completo a Ele, para que n’Ele, com Ele e por Ele se dê glória ao Pai. A sagrada Liturgia requer que estes dois elementos estejam intimamente ligados. (...) De outra maneira, a religião se converte em um formalismo sem fundamento e sem conteúdo”. Não podemos, além disso, não mencionar o impulso notável que este pontífice imprimiu à atividade missionária da Igreja com as encíclicas Evangelii praecones (1951) e Fidei donum (1957), destacando o dever de cada comunidade de anunciar o Evangelho aos povos, como o Concílio Vaticano II fará com valente vigor. Da mesma forma, o Papa Pacelli demonstrou seu amor às missões desde o começo do seu pontificado, quando, em outubro de 1939, havia querido consagrar pessoalmente 12 bispos de países de missão, entre os quais havia um indiano, um chinês, um japonês, o primeiro bispo africano e o primeiro bispo de Madagascar. Uma das suas constantes preocupações pastorais foi, por último, a promoção do papel dos leigos, para que a comunidade eclesial pudesse aproveitar todos os recursos e energias disponíveis. Também por este motivo a Igreja e o mundo lhe agradecem.

Queridos irmãos e irmãs, enquanto rezamos para que prossiga felizmente a causa da beatificação do servo de Deus Pio XII, é bom recordar que a santidade foi o seu ideal, ideal que ele propôs a todos. Por isso, impulsionou as causas de beatificação e de canonização de pessoas pertencentes a povos diversos, representantes de todos os estados de vida, funções e profissões, reservando um grande espaço às mulheres. E foi precisamente a Maria, a Mulher da Salvação, que ele indicou como sinal de esperança segura para a humanidade quando proclamou o dogma da Assunção durante o Ano Santo de 1950. Neste nosso mundo, como também naquele momento, repleto de preocupações e angústias pelo seu futuro; neste mundo, onde, talvez mais do que então, o afastamento de muitos da verdade e da virtude deixa entrever cenários privados de esperança, Pio XII nos convida a dirigir nosso olhar a Maria, em sua assunção à glória celeste. Convida-nos a invocá-la com confiança, para que nos faça apreciar cada vez mais o valor da vida na terra e nos ajude a dirigir o olhar à meta verdadeira à qual todos nós estamos destinados: essa vida eterna que, como assegura Jesus, já possui quem escuta e segue a sua palavra. Amém!


Fonte: ZENIT

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