Cruz: sentido para o sofrimento humano

Por Izabel Ribeiro Filippi


Em nosso tempo tornou-se comum a idéia, mesmo entre os que dizem fazer parte da Igreja de Cristo, que a Cruz deve ser esquecida ou até desprezada. Tendo Jesus ressuscitado, nada mais impróprio que fazer menção à Sua paixão e morte, dizem estes. Este conceito, no entanto, contraria o próprio Cristo, uma vez que Ele estabeleceu seu domínio do alto do madeiro, onde também nasceu sua Santa Esposa, a Igreja, do seu coração traspassado donde jorrou água e sangue.

É importante salientar que a Cruz de Cristo, com tudo que dela provém, nos é passada através da experiência do Ressuscitado. Os abundantes testemunhos bíblicos sobre a Cruz são daqueles que presenciaram também a Ressurreição. O argumento, portanto, de que lembrar da Cruz é lembrar-se apenas de um Deus morto, perde toda sua força diante da glória por Ela manifestada.
Se para muitos continua a ser causa de escândalo, como outrora foi para os judeus, inclusive entre os apóstolos, para os que se decidem seguir Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6), a Cruz é fonte de alegria, dando sentido ao sofrimento humano. Como dizia o Apóstolo: “Alegrai-vos em ser participantes dos sofrimentos de Cristo, para que vos possais alegrar e exultar no dia em que for manifestada sua glória” (1Pd 4, 13).

No Antigo Testamento, o sofrimento, não havendo palavra específica para designá-lo, era sempre expresso como o mal objetivo. Já com a língua grega, e, portanto, o Novo Testamento, surge o termo sofrimento, exprimindo agora uma situação na qual o homem sente o mal [Cf. Carta Apostólica Salvifici Doloris, de Sua Santidade o Papa João Paulo II]. Sendo o mal a privação do bem, quando o homem se distancia de Deus, priva-se do Sumo Bem e, por isso, sofre. Apartado de Deus sofrerá eternamente. Deste sofrer é que Cristo veio nos salvar, submetendo-se, para isso, ao sofrimento do homem em sua natureza decaída, ainda que fosse imaculado e nada merecesse.

Mas nem todo padecimento é causado por culpa própria do homem. Já no Antigo Testamento nos é apresentado um justo que sofre sem culpa. Deus permite que Jó, ainda que não O tenha ofendido, seja provado, e ele tudo suporta. Contudo, o sofrimento de Jó é apenas anúncio d'Aquele que viria. Jesus, sendo o Justo de Deus, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado (Hb 4, 15). O sofrimento de Cristo mostra-nos que nem todo mal experienciado é por culpa própria.

Tem-se, portanto, o caráter educativo da pena. O sofrimento dá ao homem a possibilidade de reconstruir o bem do qual está privado. Dá-nos a possibilidade de conversão. Faz também que lembremos de nossas misérias, levando-nos a reconhecer quão pequenos somos diante d'Aquele que detém toda honra, poder e glória, e a nos aproximar d'Ele. Não é, por conseguinte, um fim em si mesmo, mas meio para chegar a Deus. Só suportando os tormentos por amor a Cristo, as almas não correrão o risco de verem-se enfadas pelo bom combate.

A redenção do homem se realizou mediante o suplício imerecido. Foi pelo sofrimento a que Se sujeitou, pelo Seu sacrifício perfeito, que Cristo trouxe a salvação ao mundo. Dá-se uma nova luz para as aflições temporais. Elas não deixam de nos infringir, por hora, mas agora temos a esperança do dia em que nada mais sofreremos, dia este que poderemos alcançar justamente através da Cruz, sob todos seus aspectos.

São Josemaria Escrivá, ao tratar da cruz que cada homem deve carregar, pede-nos que não haja resignação diante dela. O sofrimento é ainda mais intenso quando não se encontra para ele uma resposta satisfatória. E por isso diz o santo: “Aprende com Ele. - Jesus leva a Cruz por ti; tu, leva-a por Jesus. Mas não leves a Cruz de rastos... Leva-a erguida a prumo, porque a tua Cruz, levada assim não será uma Cruz qualquer: será... a Santa Cruz! [...] Quer a Cruz. Quando de verdade a quiseres, a tua Cruz será... uma Cruz sem Cruz” [Santo Rosário, 4° Mistério Doloroso].
“A senda do cristão é levar a Cruz. «Se o homem se determina a sujeitar-se a levar a cruz, que é um determinar-se querer de veras achar e levar trabalho em todas as coisas por Deus, em todas elas achará grande alívio e suavidade para andar este caminho assim, despido de tudo, sem querer nada. Porém, se pretende algo, quer de Deus, quer de outra coisa, com alguma propriedade, não vai despido nem abnegado em tudo; e assim, nem caberá nem poderá subir por esta senda estreita»” [São João da Cruz, Subida ao Monte Carmelo – Bíblia de Navarra – Santos Evangelhos p. 194].

Assim, o homem só poderá encontrar alívio para seu sofrimento ao carregar sua cruz junto à Cruz de Cristo, sem nada mais querer que o querer de Deus. “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). Com seu sofrimento torna-se participante do sofrimento redentor de Cristo.

Será a Cruz e sua livre aceitação, o sentido para o sofrimento do homem, pois aí encontrará repouso para a alma, sendo o jugo de Cristo suave e Seu peso leve (Mt 11,30). A consolação recebida ao carregar esta cruz é expressa por São Paulo: “Em tudo somos oprimidos, mas não sucumbimos. Vivemos em completa penúria, mas não desesperamos. Somos perseguidos, mas não ficamos desamparados. Somos abatidos, mas não somos destruídos” (2Cor 4,8-9). Quem vive deste modo manifesta a vida de Cristo em si.

Por nossa natureza corrompida pelo pecado temos tendências de agir conforme nossa própria vontade, sem confiar na autoridade divina. Por isso, necessitamos combater estas más tendências, submetendo-nos inteiramente a Deus e à sua graça. Somente assim o amaremos em espírito e verdade, reconhecendo n'Ele o Senhor, confiando em sua perfeita Vontade.

A vida toda será perpassada por esta luta. Os sacrifícios e mortificações são caminhos necessários para vencer a concupiscência que nos afasta de Deus. “Para seguir e amar a Jesus, a condição essencial é renunciar-se a si mesmo, isto é, às tendências más da natureza, ao egoísmo, ao orgulho, à ambição, à sensualidade, à luxúria, ao amor desordenado do bem estar e das riquezas é levar a sua cruz, aceitar os sofrimentos, as privações, as humilhações, as reveses da fortuna, as fadigas, as doenças numa palavra, todas essas cruzes providenciais que Deus nos envia, para nos provar, arraigar na virtude e facilitar a expiação de nossas faltas” [Tanquerey, A. A Vida Espiritual Explicada e Comentada, 322].

Muitas são as formas pelas quais padecemos, sejam elas físicas ou espirituais. Mas há o sofrimento que é próprio do cristão. Se os que se afastam de Deus sofrem, construindo sua própria ruína, os que se decidem por aceitar o Cristo terão que suportar muito em honra a Seu santo nome. Porém são os bem-aventurados: os pobres de espírito, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacíficos, os perseguidos por amor a justiça e os injuriados e perseguidos por causa de Cristo. Para estes, será grande a recompensa nos Céus (Mt 5,3-12). Se “sofre por ser cristão, não se envergonhe, mas dê glória a Deus por este título” (1Pd 4,16).

A fuga das implicações que nos traz abraçar a Verdade, cuja plenitude está na Igreja Católica, é bem identificável na relativização da fé que vemos, de forma especial em nossa sociedade atual. A conveniência de poder levar a vida a seu próprio gosto é preferível, para aqueles que ainda não descobriram o Amor de Deus, a uma vida cuja adesão a Cristo exige escolhas que muitas vezes se desencontram com o desejo humano pelo prazer imediato.

Há os que, ao verem a obediência de Cristo que culminou em sua morte de Cruz, e sabendo do dever do cristão de imitá-Lo, vêem nisso uma privação desnecessária, um seguimento impensado. Pelo contrário, o que se submete ao Senhor, o faz através de sua livre adesão à Verdade, compreende que isso exigirá certos sacrifícios, mas que apenas junto desta Verdade poderá ter a felicidade para a qual foi criado. Não uma felicidade proveniente das misérias do mundo, mas a que se inicia no mundo tendo em vista a felicidade plena que encontrará quando puder ver Deus face a face.

“A capacidade de aceitar o sofrimento por amor do bem, da verdade e da justiça é também constitutiva da grandeza da humanidade, porque se, em definitiva, o meu bem-estar, a minha incolumidade é mais importante do que a verdade e a justiça, então vigora o domínio do mais forte; então reinam a violência e a mentira. A verdade e a justiça devem estar acima da minha comodidade e incolumidade física, senão a minha própria vida torna-se uma mentira. E, por fim, também o « sim » ao amor é fonte de sofrimento, porque o amor exige sempre expropriações do meu eu, nas quais me deixo podar e ferir. O amor não pode de modo algum existir sem esta renúncia mesmo dolorosa a mim mesmo, senão torna-se puro egoísmo, anulando-se deste modo a si próprio enquanto tal” [Carta Encíclica Spe Salvi, de Sua Santidade o Papa Bento XVI].

“Observar os mandamentos, seguir os conselhos e inspirações da graça, é seguramente praticar um alto grau de mortificação” [Tanquerey, A., A Vida Espiritual Explicada e Comentada, n° 331]. Para os que amam, muito mais que privações e abnegações, seguir as leis de Deus e fazer sua Santa Vontade é uma constante afirmação. Muito mais que apenas deixar de fazer o mal, é preferir o bem e busca-lo incessantemente.

Para despojar-se do homem velho e se revestir do novo, requer-se um trabalho como o que se dá na lapidação de uma pedra preciosa. A rocha é cortada, moldada, lascada, engastada e polida. Quem diria que da tosca pedra inicial sairia tão bela jóia? Assim o homem, se quiser espelhar-se na perfeição do Filho de Deus, passará por um árduo processo, cujas feridas porventura causadas serão fonte de cura.

E Nosso Senhor nos dá as graças necessárias para vencer esta batalha, que é a vida de cada homem, também através da Cruz. Fonte de vida, o sacrifício de Cristo torna-se acessível para nós através do Sacramento do altar, a Sagrada Eucaristia. “Assim como Ele, por meio da Cruz, sofreu a transformação do seu corpo para uma nova humanidade, totalmente penetrada pelo ser de Deus, do mesmo modo, para nós, este alimento deve ser abertura da existência, passagem pela cruz e antecipação da nova existência da vida em Deus e com Deus” [Bento XVI, Jesus de Nazaré].

Acaso podemos nos desesperar ante a nossa condição? Aos que pensam que ela é fruto de um Deus que deixou o homem à mercê, já diz a Liturgia da Igreja: “O felix culpa quae talem ac tantum meruit habere Redemptorem”. Felizes nós pela culpa original, pois agora temos tão grande Salvador!

“A eloqüência da Cruz e da morte, no entanto, é completada pela eloqüência da ressurreição” [Carta Apostólica Salvifici Doloris, de Sua Santidade o Papa João Paulo II]. Cristo vive! Esta é uma realidade que deve fazer cada homem aceitar a cruz que lhe foi imposta, pois, à imitação de Cristo, havemos de carregá-la por amor a Deus, para, no dia final, chegarmos à glória eterna junto dEle.

FILIPPI, Izabel Ribeiro. Apostolado Sociedade Católica: Cruz: sentido para o sofrimento humano. Disponível em: http://www.sociedadecatolica.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=100. Desde 06/02/08

0 comentários: